Grutas - Entrada Costeira

Aquilo não era bom. Os ânimos se acirravam rapidamente entre os filhotes. O impuro era uma bola de nervos, o filho de Halvar era orgulhoso, o lobo não estava nem aí e todo mundo tinha sangue fenrir correndo nas veias. O próprio Axel havia passado um bom tempo sozinho, mas os Garou eram parte lobo, e o lobo não caça sozinho. Por isso Gunnar havia lhe ensinado que a matilha era mais importante do que o Garou. Eles ainda não eram uma matilha. Merda, mal eram Garou. Mas se fossem dar certo precisavam agir como uma matilha. Ele deixou então sua lua soltar o verbo.

- Seu bando de maricas perdidos, a gente só tem um drakkar e nenhum quartinho privado, então eu sugiro que a gente comece a agir como o que somos. Nós somos a porra dos Crias de Fenris! Ninguém liga pra quem é filho de ninguém, do que me consta todo mundo aqui mija verde ainda. Fenris escolhe seus campeões no campo de batalha, e os Fenrir entram em batalha juntos! Vocês estão cheios de fúria e vontade de mostrar o que sabem? Bom! Eu também estou! Então vamos conquistar essa porra desse destino que nos pertence! E quando a gente terminar se ainda não for o bastante eu enfrento todo mundo aqui!

Ele olhou em volta para os suprimentos que tinham.

- Garras Sangrentas disse que temos cerca de 10 dias de suprimentos nesse navio se racionarmos. Ao que eu digo: foda-se! Eu nunca saqueei uma cidade antes, mas nunca é tarde demais pra começar! Lofote soa como um bom porto!

Ele se senta e segura o primeiro remo da esquerda.

- Opa, leve a gente para o mar! Hagen, impuro, vocês querem brigar ou ajudar eu e esse grandalhão aqui a remar também?

Após todo o falatório dos outros Fenrir, finalmente haviam chegado a um consenso e partiriam.

- Já era hora de decidirem parar de lamber as próprias bolas e partir!

Remando ainda desajeitado pela falta de prática, Sigurd segue fazendo sua parte para ajudar a embarcação a chegar em águas mais fundas. Assim, ele imaginava, seriam capazes de pegar o vento e velejar.

A ideia de Axel não o agrada. Saquear o fruto do trabalho duro de pessoas honestas não era o que ele via como glorioso ou honrado.

- Mas que grande glória seria, Axel! Saquearmos uma cidade onde parentes de nossa própria tribo podem residir. Isso que eu chamo de honrado e glorioso! Não essas ideias do Halvarson mais velho de lutar contra Jottuns. Lutar contra Jottuns é para fracos, os fortes saqueiam, matam e estupram os mais fracos!

O tom ácido na voz de Sigurd era óbvio e o sarcasmo era como se fosse sua segunda língua. Sendo assim, ele se fazia muito bem entender quando era sarcástico.

- Vamos, irmãos! Vamos matar, pilhar e destruir. Foi exatamente pra isso que o Grande Fenris nos abençoou como seus filhos! Vamos!

E sem dizer mais palavra alguma, ele segue remando.

Finalmente após tanto tempo, Sun Stone estava seguindo seu caminho... (continua em Midgard - O mar e além)

Sihtric sente o movimento de seu drakkar cessar quando ele bate em alguma coisa, e isso o faz despertar de seu sono. Estava em mar aberto havia três dias e até onde seus mapas indicavam, estava perto da península onde ficava Stavanger, seu destino desejado... mas apesar do tranco do barco tê-lo acordado, ele não parecia estar preso à nada e ele não compreende imediatamente o que havia acontecido.
Uma pesada bruma encobria o mar e toda a visão além do drakkar, mas todos seus sentidos captar a presença de mais alguém na proa do barco, olhando além... alguém que ele já vira antes, em um sonho (estaria dormindo ainda?) na noite em que Fenris o chamara para ser sua cria: um homem de armadura de escamas antiga, um longo manto de peles e machado e escudo presos em suas costas. Um elmo cobre seu rosto quase totalmente e apenas um emaranhado de cabelo e barba louros podem ser distinguidos além dos olhos sem pupilas. Ele parecia calmo, talvez até um pouco triste, e olha para o jovem que adormecera no chão do barco de forma solene.

- Já era tempo.

Sua voz parece sair das entranhas do próprio Sihtric, poderosa como um trovão.

O descanso era merecido mas inquieto. Estava no mar há dias e, a despeito do jubilo de sentir o Drakkar cortando o mar, o cansaço cobrava o seu preço. Não gostava de dormir em mar aberto, as correntes marítimas podiam arrastar uma embarcação para costas rochosas que engoliam maus marinheiros com a mesma facilidade que uma prostituta te tira até a última moeda. Sihtric, no entanto, sabia onde estava e havia aprendido o comportamento daquela corrente, algumas horas de descanso não lhe levariam para a costa de Stavanger e nem lhe mandariam para as profundezas gélidas do mar. Havia baixado as velas para que o sopro do vendo não o levasse mais longe do que gostaria e adormecera com conforto de sentir o balanço das ondas conduzindo o Drakkar lentamente. Não sabia por quanto tempo estava dormindo quando um solavanco o retira sobressaltado de seu merecido descanso.

“Merda!”

É só o que pensa enquanto seus olhos arregalados buscam entender o que estava acontecendo. O horizonte era nada além de neblina e parecia tão turvo quanto sua mente recém desperta ainda estava. A rajada de adrenalina ainda percorria seu corpo quando percebe que o Drakkar não estava fazendo agua, e isso significava que havia batido em algo menor, mas não tem tempo para prosseguir com o raciocínio pois então nota uma outra presença na embarcação além da sua. Sua mão instintivamente vai ao cabo da faca que mantinha em seu cinto enquanto seus olhos se cravam no invasor e captam principalmente os olhos vazios que o encaravam de volta.

“O que diabos é... ele?”

Aquela figura emanava uma aura de poder e estava vestida para a guerra, mas ao invés de inspirar morte a sensação era quase serena. Uma serenidade melancólica de alguma forma. O jovem percebe que sentia muitas coisas naquele momento, mas ameaça não era uma delas. A voz de trovão ecoa e parece vir de seu próprio amago, o que complementava a sensação de estar diante de algo maior. Sihtric não era especialmente afeito aos deuses, não mais do que a maioria das pessoas. Claro, sacrificava um bom cavalo para batizar um bom navio, dava seu melhor para agradar os deuses e tocava seu martelo para afastar maldições. Sabia da existência de muitas coisas, sabia que era uma delas, mas aquela situação parecia diferente do que conhecia. Se levanta e, sem se aproximar, encontra sua voz para dizer:

- Eu te vi antes.. na noite de fogo e sangue. Quem é você e já é tempo de que?!

Ouvir sua própria voz lhe dava alguma confiança e Sihtric permanece observando aquela figura sem conseguir deixar de se perguntar:

“Isso é um maldito sonho?!”

A presença fantasmagórica não se desfaz, mas havia momentos em que parecia se confundir com as brumas ao seu redor... A figura não tem qualquer reação quando ele alcança sua faca e os olhos vazios continuavam parados.

- ...de chegar em casa.

Sihtric percebe então que o vento não mais soprava e, aparentemente, o drakkar também não estava em movimento, apesar de sentir um leve balançar devido às ondas.

- Eu sou Coração de Ferro e há muito tempo eu esperava que Fenris escolhesse alguém.

O invasor etéreo permanecia encarando-o com seus olhos vazios e, por vezes, era difícil diferenciar sua silhueta da névoa que os envolvia. As brumas aliadas à presença fantasmagórica fazem Sihtric acreditar por alguns instantes que havia morrido enquanto dormia e estava agora nas garras gélidas de Hel em Nilfhein, mas afasta a ideia ao ouvir dizer que estava indo pra casa.

“Minha casa não é Nilfhein, não é maldita terra da névoa. Minha casa agora é tudo que eu puder alcançar com um Drakkar.”

O pensamento lhe trazia o conforto de saber que estava certo, e responde à figura desconhecida na intenção de descobrir mais:

- E onde é esse lugar? O que eu chamava de casa virou cinzas e morte, você estava lá.

Havia convicção em sua voz mas não hostilidade, pois também não se sentia ameaçado, mas era inegável que a ausência das estrelas e do sabor salgado do vento em seu rosto o deixavam desconfortável, lhe davam uma sensação de vazio. Por consequência não estava em sua zona de conforto e não se permitia baixar a guarda por um instante sequer. Ainda assim, ouve com atenção a apresentação de Coração-de-Ferro e as observações sobre sua espera. Não conhecia esse nome, não ouvira nada sobre seus feitos, mas conhecia a lógica de nomes como aquele.. era assim que os homens lobo se chamavam. Também sabia o que era ser escolhido por Fenris, e sabia o que havia se tornado naquele dia de tormenta.

- Eu não conheço seu nome, mas sinto que você conhece o meu. Porque você esperava por mim? Porque Fenris me escolheria se meu destino é o mar?

A presença ou não se incomoda ou não percebe a postura desconfortável do jovem Garou e sua voz transpassava tudo, menos que ele próprio sentia algum desconforto.

- Sua será a terra prometida pela Dragonesa do Mar, aquela quem decide o futuro de todas as embarcações pelo oceano e quem nos trouxe até aqui, embora o tenha feito em tempos diferentes... com necessidades diferentes. Ela é a mãe do Hov (Caern) que me foi negado e onde você deve conquistar seu nome e ressuscitar o meu antes de ganhar o mundo.

Ele faz uma breve pausa, como se pensasse em algo, e então volta a dizer:

- Eu sou o passado tanto quanto você é o futuro. Sou o que veio antes. Há muito tempo Fenris cobrou seu preço de sangue para que meus irmãos e irmã pudessem derrotar seus inimigos... Mas também sou quem os Skalds (galliard) esqueceram. Mas agora ele o escolheu, sob a lua nova, para ensinar o que deve ser aprendido.

Coração-de-Ferro, aquela figura saída do nada, ou talvez de seus sonhos, permanecia inabalável na proa do barco. Ele não temia Sihtric, isso era tão evidente quanto piolhos nas barbas brancas de um velho, e o jovem por sua vez se pega perguntando se o temia.. provavelmente não, não era o medo do que o dono daqueles olhos vazios podiam fazer que motivava seu desconforto. Sihtric tinha garras, presas, e olhos saídos de pesadelos, agora ele sabia que também era uma daquelas criaturas que espreitam na noite e fazem guerreiros experientes tocarem os martelos em seus pescoços para afastar o mal. Não, não era medo, era a sensação de não pertencer aquele mundo que o causava seu desconforto. Ouvia o que Coração de Ferro tinha a dizer o pensamento vem involuntário:

“A vida era mais simples antes da fúria..”

E era mesmo. Boa madeira para um bom barco, um bom barco para cortar as ondas, terras novas para desbravar, uma mulher na cama para noites frias, uma caneca cheia para apaziguar o espirito, dados lançados na mesa para ganhar moedas, moedas para uma boa puta quando longe de casa. Era simples, era o que precisava. Ao invés disso agora estava ali, ouvindo um espirito de outros tempos falando sobre a Dragonesa do Mar, que decide sobre a vida e a morte de homens nos mares do norte. O destino é uma mulher amarga..

“.. mas depois de um tempo não são todas!?”

E essa conclusão ácida era a maneira de Sihtric aceitar que teria que lidar com os dados que estivessem na mesa. Responde tentando entender o que estava sendo dito:

- Stavanger, é lá onde fica o Hov (Caern) que você fala? Porque essa promessa da Dragonesa do Mar te foi negada, você foi traído?

Então para para prestar atenção na forma como Coraçao-de-Ferro falava, ele não era daquelas terras, não com aquele sotaque, não com aquela forma de falar. Sihtric não conhecia aquele mundo tanto quanto gostaria, mas uma coisa que ele sabia era reconhecer quando alguém tentava controlar seu destino. Nem seu pai havia conseguido, o maldito cabeça dura. Sempre fora bom em questionar, desde quando deixara de cagar em suas fraldas havia sido um espirito livre, não pretendia mudar agora.

- Minha mãe me contou histórias sobre o avô de meu avô e de como ele havia partido para Stavanger muitos anos antes, ela se lembra de muitas coisas. Você fala sobre ser o passado de meu futuro, você fala dos meus deveres, então me responda: porque eu deveria me importar com o seu nome esquecido? Você não é do meu sangue, Coração-de-Ferro, você fala como um estrangeiro.

Os olhos astutos do jovem ainda fitavam os olhos vazios daquela figura antiga, as coisas estavam ficando interessantes.

A impertinência do garoto, antes de irritar o homem feito de brumas, o diverte e sua risada ressoa como se viesse das profundezas da terra. Mas então ele para, mantendo seu olhar no jovem Garou, seu descendente, e diz com convicção que beirava à exaltação:

- Eu sou estrangeiro para você, Sihtric filho de Lea, filha de Aalottar, filho de Mika? Onde nasceu tua mãe ou a mãe dela? Ou o avô de seu pai e ele mesmo, se não no mundo? Toda a terra sob a qual pisar as patas do Grande Fenris é seu lar, todo vento que bater em seus pêlos pertence à Ele...toda água que carregar suas crias para novos mundos pertencem à Fenris e o sangue de suas crias se mistura no campo de batalha mais do que nas veias de seus filhos. Como posso não ser de seu sangue, jovem Sihtric da Frísia, se nosso sangue é o mesmo do Lobo?

Ele faz uma pausa, talvez por ter se empolgado demais, e olha para além da amurada do barco, para o paredão de névoas como se pudesse ver além.

- Stavanger....sim. Eu conheço esse nome. Sei que foi o nome dado aos filhos de Hagar, o Intrépito, mas nunca vi a cor de suas águas ou a sombra de suas árvores - ele faz uma outra pausa, os olhos vazios jamais piscavam. Jormungandr (a Wyrm) tem muitas faces e muitos artifícios e tal como ela se enrosca nas raízes da Árvore da Vida, assim ela deita-se também nas mesmas camas que os Garou, senta-se em suas meses, bebe de seu hidromel, espalha lentamente seu veneno e coloca filho contra pai, irmão contra irmão, amigo contra amigo... ela conhece o caminho para o coração dos homens como uma prostituta de portos além da sua imaginação, garoto, e foi para tardá-la que Fenris cobrou meu corpo e o tempo esqueceu meu nome. Histórias se tornaram lendas, lendas se tornaram mitos... e muito do que não poderia ser esquecido se perdeu, pois são poucos os que vivem hoje que ainda se lembram.

Ele volta a encarar Sihtric, dizendo em seguida.

- Haverá o tempo em que ela virá do coração das montanhas e irá reivindicar o que lhe foi tomado...mas a época do sangue, do ferro e do fogo ainda está distante. Antes que isso aconteça, Fenris o escolheu, nascido sem lua, para revelar aquilo que os olhos ignoram, para ensinar aquilo que é ignorado, para lembrar aquilo que foi esquecido... você quer respostas, garoto, mas eu apenas tenho perguntas para lhe dar.

A risada gutural que se segue parecia capaz de fazer trepidar a madeira da mesma forma que ocorre quando a quilha de uma embarcação raspa areia e pedras em aguas rasas. Esperava que a criatura de névoa se irritasse com as indagações mas seu divertimento diante da situação era genuíno demais. Coração de Ferro ria como um adulto ouvindo uma criança duvidar que Midgard havia sido criada a partir do corpo de Ymir, o pai dos gigantes, como se os questionamentos feitos fossem óbvios demais para serem qualquer coisa além de engraçados. Ouve a resposta exaltada do guerreiro de outrora e tenta entender o que estava sendo dito, mas muito daquilo parecia com a poesia de um skald. Ainda assim, era inegável que aquela figura conhecia seus antepassados.

“Ele não se importa com a terra, ele se importa com o sangue mesmo que antigo. Se nosso é o sangue do grande lobo, porque outro não foi o escolhido?”

Isso é o que estava mais claro para Sihtric, que a herança era maior, que a ancestralidade era mais profunda que qualquer outro laço mundano, que a terra desse mundo era deles onde quer que estivessem. Queria acreditar, queria sentir de novo a sensação de pertencimento, mas algo o levava a questionar “porque”.

- Você me conhece, assim como conhece minha mãe, o pai dela, e além, vejo isso.. mas eu continuo não te conhecendo. Se eu sou seu descendente me conte sobre seu nome, me conte porque Fenris me escolheu agora, depois de tanto tempo.

Seguia ouvindo aquelas palavras antigas e tentava assimilar tudo o que pudesse ser assimilado. Tinha ouvido falar sobre Jormungandr desde criança mas a tinha como a Serpente Mundo, agora havia sido ensinado que o conceito de grande mal era mais palpável e que a serpente não só cobriria a terra como também apodreceria o coração dos homens se não fosse impedida.

“Eu queria mesmo era a parte das prostitutas de portos além da imaginação, mas aparentemente eu sou um dos desgraçados que devem impedir a serpente.. o destino é uma é pior que uma mulher amarga, é uma mulher com sífilis que cobra como se fosse virgem.”

A criatura das brumas parecia encarrega-lo de trazer à tona a verdade, mas qual maldita verdade era aquela que nem ele contava. Então indaga:

- Você está dizendo que se sacrificou para que Fenris desse aos outros o que te foi prometido, Coração de Ferro? Você surge na noite sem estrelas para eu lembre aos outros sobre seu nome esquecido ou para que eu retome o que deveria ser seu? Me conte a história ou, ao menos, me diga quem se lembra.

E não evita o pensamento:

“Esses homens lobo.. não me admira que vivam na escuridão e nos pesadelos. Quem diabos interrompe o sono de um homem pra trazer perguntas?!”

A aparição fica um tempo em silêncio, era difícil entender o porquê. Talvez estivesse pensando, talvez estivesse dando tempo para o garoto digerir tudo... Ele permanece olhando Sihtric, mas então diz:

- Eu recebi o meu nome quando conquistei meu espaço entre os Garou. Me chamaram Coração-de-Ferro porque eu não conheci o medo... Eu nasci na Lua Crescente e caçava os inimigos de Fenris em suas tocas antes da Dragonesa do Mar me pedir para acordá-la nesta terra. Talvez Fenris o tenha escolhido para continuar meu trabalho, talvez ele o tenha escolhido para seguir com outro propósito...eu não tenho esta resposta.

Ele olha novamente por sob a amurada, ouvindo com atenção, mas então volta-se para o jovem e diz:

- A Dragonesa do Mar veio até mim em um sonho e me mostrou a terra onde viria a ser Stavanger. Ela me mostrou que Jormungandr havia feito um ninho no qual o Dragão Verde reunia seus filhos e Jord (Gaia) não conseguia alcançar. Ela precisava que os filhos de Fenris purificassem aquela terra e a libertassem de seu sono e foi assim que nós recebemos nosso destino... Mas eu sabia que por mais ferozes que fossemos, o Dragão Verde não permitiria que seus filhos caíssem pelas nossas garras e presas. A besta de guerra de Jormungandr era terrível e para que meus irmãos conseguissem completar nosso destino, na noite anterior à embarcarmos para aquele lugar eu, que nunca senti medo, pedi para que Fenris se fizesse presente e derrotasse o dragão caído. Ele aceitou, mas para que isso fosse possível eu deveria entregar meu corpo...E assim foi feito. Fenris consumiu minha carne mas meus irmãos nunca souberam de meu sacrifício... Agora... agora é sua vez. Você é minha linhagem, queira isso ou não, goste disso ou não, e deve tomar o lugar que é de nosso sangue por direito.

Sihtric fita com resolução aqueles olhos vazios que o encaravam em silencio. Percebe naquele momento que, estranhamente, o desconforto inicial agora parecia arrefecer-se e a situação parecia finalmente estar tomando contornos familiares. Era quase como se estivesse considerando normal, ou ao menos não uma insanidade, manter uma conversa com aquele espirito de outros tempos ou o que quer que ele fosse.

“O homens no mar dizem que trazer uma mulher pra um Drakkar traz azar pra tripulação.. queria ver a cara dos bastardos desdentados se soubessem que eu trago fantasmas de parentes mortos.”

Sorri involuntariamente enquanto se perguntava se a criatura das névoas havia finalmente se ofendido, mas nesse mesmo momento o silencio é quebrado. Coração de Ferro falava sobre seu nome, sobre uma parte da sua história, e aquilo desperta o interesse do jovem construtor de barcos. Se paga pensando se um dia teria um nome como aquele, se outros Garous falariam seu nome com respeito, ou se os inimigos de Fenris tremeriam ao perceberem tardiamente que o Drakkar que rasgava a areia na última luz do dia era conduzido por sua mão. Quase se pega ansiando por aquilo.. para quem havia nascido para conhecer apenas a maresia, para trabalhar a madeira, para rasgar a mão no leme, no serrote ou na rede de pesca, aquela vida tinha lá seu apelo. Sempre soubera que merecia mais, mais do que o gosto cotidiano de peixe ensopado, mais do que deitar na palha velha e acordar com o cheiro de merda que vinha das ruas assim que o sol ganhava o céu, e sabia que iria lutar para rasgar os mares e tomar o que era seu. O que não sabia era que seu destino também teria garras, presas e sangue.

“Talvez tivesse que ser assim..”

Responde ao espirito ancestral, aceitando que o destino traria essa resposta:

- Terei que descobrir por conta própria então.

A história que se segue remetia ao passado mas tinha um sabor de presente. A sensação de pertencer ao ciclo se faz presente de forma palpável, e as coisas começavam a fazer algum sentido para o jovem filhote. Havia muito o que ainda não sabia, isso era certo, mas sua mente trabalhava nas nuances daquelas palavras para extrair o que pudesse. Uma profecia, um sacrifício em prol do êxito, e alguém para relembrar o que havia sido esquecido, esse era o ciclo, esse era um trabalho que falia a pena. Querendo ou não, se tudo aquilo era verdade Coração de Ferro havia sido um grande herói, e aquilo dava senso de orgulho ao jovem que antes havia sido apenas o filho de um construtor de barcos. Sua resposta pela primeira vez reflete o que, imaginava, o espirito das brumas tencionava desde o inicio:

- Eu escolhi zarpar para Stavanger para revelar meu passado antes de conquistar meu futuro. Agora percebo que, se seu é o meu sangue e o nosso sangue é o do Lobo, mais do que revela-lo, é chegada a hora de tomar a história em minhas mãos. Os homens lobo conhecerão seus feitos, Coração de Ferro, isso você terá de mim.

Encara o ancestral, talvez pelo furor do momento de descoberta do sangue que corria em suas veias, e naqueles olhos vazios enxerga o caminho para desbravar seu destino.

A aparição abre um breve sorriso visível embaixo da barba, mas seus contornos começam a ficar meio difusos, como se ele estivesse desaparecendo na bruma...Então Sihtric sente um tranco no barco e então ele acorda...

Estava deitado no chão do barco onde se lembrava estar, mas ao invés de brumas, ele via o interior de uma gruta, com o barco estancado na breve praia de pedras, de onde era possível ver a entrada que se abria para o oceano e onde um céu azul de sol brilhante aparecia. Fora tudo um sonho?

- Oooi? Garoto? Você tá vivo? A Dragonesa nos enviou outro corpo...puta que me pariu.

Era um homem de estatura média que estava olhando para Sihtric, em pé ao lado de fora da proa encalhada.

Sihtric sente uma certa satisfação ao ver aquele breve sorriso, não por ter deixado Coração de Ferro aliviado mas sim por ter descoberto que lidar com fantasmas não era tão diferente do que lidar com os vivos. Essas pequenas coisas, essas pequenas descobertas, por mais simples que fossem, significavam muito para o sem lua, que reunia cada informação em sua mente. Para o jovem a vida era aquilo, um grande quebra cabeças em que se dava melhor quem conseguia encaixar mais peças no emaranhado panorama. E por Thor, Sihtric gostava de estar um passo à frente e mais ainda de se dar melhor. E por isso era sua vez de cobrar sua parcela na barganha:

- Agora já podemos falar sobre como você vai..

E ainda terminava sua próxima demanda quando percebe os contornos do espirito ancestral se tornando embaçados para então desaparecer na nevoa. Não sabia a quanto tempo estava na escuridão quando um novo solavanco o faz despertar. Dessa vez não acorda sobressaltado, mas a sensação de já ter vivido aquilo era inevitável. Qual era o nome da sensação? Sabia que já tinha visto aquilo escrito em algum lugar..

“Bom, foda-se.. era um maldito sonho?!”

Ainda deitado no mesmo lugar onde adormecera, via o teto da gruta em que se encontrava e podia ver na entrada rochosa os contornos de um céu bastante límpido que denunciavam um dia ensolarado no mar. Também via a face de um homem desconhecido encarando-o ao lado da proa. Sua mente astuta começa a ser oxigenada com as novas informações.

“Eu não esperava encontrar terra antes das primeiras horas da manhã.. quanto tempo eu dormi?!

Queria poder nesse momento ver a altura do sol no céu para ter alguma noção do tempo, mas isso lhe era negado de imediato.

“E esse homem, ele fala sobre a tal da Dragonesa do Mar.. porra, se era um sonho eu não sei, mas ouvir sobre essa tal Dragonesa duas vezes seguidas não é uma coincidência. Aposto o leme de um bom barco que não.”

Então começa a se levantar despreocupadamente enquanto responde ao homem que estivera ignorando:

- Esse corpo aqui ainda tem vida, homem de Stavenger.

E esse era o primeiro anzol que jogava tentando fisgar mais sobre os dados que Fiandeiras jogavam com sua vida, veria se o homem confirmaria suas suspeitas. Havia falado com convicção sobre Stavenger, e certamente queria que parecesse que sim, mas a realidade era que não sabia onde estava. No entanto, se Coração de Ferro não era um sonho e tudo aquilo estava predestinado talvez fosse mesmo Stavenger. Afinal, como diabos ele teria passado por aquela reentrância rochosa sem se esfolar nas pedras se não tivesse sido conduzido até ali? Nenhuma maré nesse mundo o levaria para aquela gruta naturalmente.

“Dragonesa do Mar.. pode até ser, ou então o mar entrou em minha mente e salgou minha razão.”

Bate em suas roupas para se livrar do sal e alcança um cantil para tomar um gole de agua visando desobstruir a maresia. Só então continua falando, e suas palavras eram sempre iscas para encontrar as peças do quebra cabeças que estava montando:

- Porque a Dragonesa lhe traria corpos? Vocês os comem por aqui?

Sorri enquanto se aproxima de maneira aparentemente despreocupada da murada e, consequentemente, do homem.

O homem, no final, parece um pouco surpreso pelo faro de Sihtric ter acordado. Pela claridade do dia sem nuvens, parecia ser pela metade do dia lá fora...

- A Dragonesa tem seus próprios objetivos e eu não sou o mais apto a interpretar suas ações. Antes de mais nada, apresenta-se, forasteiro...ou devo considerar essa conversa o prenúncio de uma invasão, ainda que uma amigável?

O homem cruza os braços na altura do peito, depois de se afastar alguns passos do drakkar e olha Sihtric nos olhos. Atrás dele, a escuridao da caverna era obvia.

O jovem percebe que aquele homem não esperava ver seu corpo com vida, então era bem possível que chegada de cadáveres fosse mais comum do que o desejável. Essa hipótese, inclusive, ia de encontro com os comentários anteriores daquele homem.. aquele lugar estava começando a se tornar interessante. Então ele começa a falar sobre sua inaptidão para entender os desígnios da Dragonesa e Sihtric nota que havia algo de familiar nele. Algo que não havia conseguido identificar de início mas que agora lhe deixava uma sensação diferente, intuitiva, e de certa forma quase palpável.

“Mas que porra, esse saco de sarna me lembra de casa..”

Lembrava sua mãe, ela também transmitia aquele sensação só que de maneira mais suave. Não entendia o motivo, mas o questionamento vem tão forte que se paga comentando:

- Você parece minha mãe por algum motivo, homem de Stavenger, só que mais feio.

Sorri levemente ante ao próprio comentário, bebe mais um gole de seu cantil, e então o observa. Talvez aquela sensação não fosse sobre sua mãe, fosse sobre os homem lobo, e talvez aquilo pudesse fazer algum sentido.

“Talvez..”

E ainda que pudesse apenas presumir a sensação de familiaridade, entendia perfeitamente bem os braços cruzados e os questionamentos imperativos. Aquele homem devia ser um guardião, um guarda, ou qualquer coisa do tipo. Não que aquilo o preocupasse, estava mais interessado em entender todo o resto mas não era o momento de conflitos desnecessários. Responde logo em seguida, ainda com um semblante despreocupado:

- Sou Sihtric da Frísia e sou muitas coisas mas não um invasor, embora eu não negue que minha garganta esteja seca e que seria bom invadir uma caneca de cerveja. Acho que você vai me perguntar a seguir porque estou nessa gruta, e a resposta é que meu sangue me lançou ao mar e talvez a Dragonesa tenha me trazido até aqui.

A claridade fora da caverna evidenciava que o sol estava a pino, entendia agora que seus olhos já estavam adaptados, e mais além havia apenas escuridão e o desconhecido. Havia chegado até ali, era hora de revela-lo.

O homem o encarava com os olhos mansos, sorridentes, e não esperava a resposta do garoto quando fala que ele se parecia com sua mãe... e então ele explode em uma gargalhada que ecoa na gruta, mas só responde depois que ele termina de se apresentar, mas ainda o faz com um sorriso no rosto:

- Eu vou te falar uma coisa sobre sua mãe, Sihtric da Frísia... ela deve ser uma puta velha, feia é triste se ela se parece comigo.

Ele abre um sorriso, gostara do garoto.

- Você me falou um bando de coisas que eu não precisava saber, garoto. Qual sua lua? Qual seu posto? Você têm o sangue de Fenris, isso eu consigo sentir... Mas não me disse o nome que conquistou na fogueira.

Ele falava com paciência, mas havia algo no ar que Sihtric não conseguia identificar...uma sensação agressiva, quase como a eletricidade correndo no ar antes que um relâmpago acertasse o chão.

Sihtric sabia muitas coisas sobre como lidar com um guarda de porto mas não com um olhos calmos, sorridentes. Aquele homem era diferente, havia ameaça em seu porte ao mesmo tempo que havia aquele sorriso em seus olhos. Era como se ele conhecesse alguma piada pessoal que ninguém mais conhecesse e mantivesse em segredo. Ele gargalha e o som reverbera pelas paredes de rocha antes que as ofensas fossem feitas. O jovem responde:

- Você está certo sobre tudo isso, a diferença é que ela tinha cheiro de sal do mar e você cheira como um homem que se deita com cabras.

E então sorri, não conhecia nenhuma boa relação que houvesse sido construída sem as ofensas mais imundas. Havia gostado daquele guarda. Então as perguntas começam a ser feitas, e Sihtric não entendia a relevância de tantas formalidades, a vida era mais simples no mar.. outra coisa que não entendia era aquela sensação pungente que o arremetia naquele local, uma sensação de ira, de cólera.

“Como o silencio que vem antes que as ondas de uma tempestade arrebentem contra a costa..”

Se pega pensando sobre isso mas sabia que não havia tempo para protelar as respostas.

- Eu já te disse minha raça, homem de Staverger, eu sou Frísio. Sobre o posto, em terra eu sou o homem que constrói o bom drakkar.. no mar eu os comando.

Então o homem fala sobre o sangue de Fenris, e isso deixa os pelos na nuca do jovem eriçados. Como ele poderia saber? Isso é tão evidente assim?

“Essa sensação.. ele também tem. Não é sobre minha mãe e nem sobre casa, é uma sensação de homem lobo.”

Então é feita a pergunta sobre o nome definido na fogueira. Sihtric se lembra da fogueira que seu barco, construído com esmero, suor, e mãos sangrando, havia se tornado. Se lembra da fúria e de como a vontade de matar havia se tornado grande demais para refrear. E ele havia matado. Com garras e presas que não sabia ter, havia matado. As palavras vêm de imbuídas de lembranças e naquele momento, pela primeira vez desde que chegara, Sihtric falava com seriedade e deixava a convicção estampada em sua fronte.

- Houve uma fogueira mas não houve nenhum nome. A única coisa que me disseram é que eu sou escolhido por Fenris.

A postura do homem era exatamente a mesma e apesar de abrir um sorriso quando o garoto o ofende novamente. A maneira de falar do garoto parecia convence-lo de alguma coisa e ele acompanha a seriedade do jovem Garou com um semblante respeitoso e gentil. Talvez ele entendesse o que ele dizia sem dizer ou talvez tivesse histórias próprias...ao final ele responde à Sihtric, de forma suave:

- Bom, garoto... você não está mentindo.

Ele não estava perguntando, apenas constatando esse fato, e segue:

- Mas acho que você não foi educado pela tribo e a dragonesa o arrastou até aqui para isso. Você é frísio, ahn? Está longe de casa, se ainda tiver uma, e eu vou levá-lo ao nosso Jarl para que ele decida o que faremos com você...

Ele o olha de forma analítica e continua:

- Eu sou Steapa...mas entre os Garou me chamam Olhos-que-Riem. Você Sihtric, até que prove ser Escolhido-por-Fenris, vai se chamar Fode-Cabras...já que está tão familiarizado com o cheiro delas.

Ele sorri, já dando as costas ao sem lua enquanto diz:

- Bem vindo à Fúria dos Mares, vou te levar pelo Hov até nosso líder, vem comigo, garoto.

O guarda permanece sereno, salvo pelo sorriso ocasional, durante a maior parte de seus palavras. Parecia até demonstrar algum respeito pelo que estava sendo dido, o que era mais do que poderia dizer da maioria dos outros guardas que conhecera e que só prestavam respeito às moedas na bolsa de um homem. Não sabia exatamente o que ele estava pensando mas não era impossível que, de alguma forma, ele tivesse passado por situações semelhantes em sua vida. Descobriria isso com o tempo, talvez. Então ele afirma sem nenhuma dose de duvidas que Sihtric não estava mentindo. Sentiu-se tentado a dizer algo como “eu não minto, homem de Stavenger” mas isso seria.. bem, uma mentira. Opta por acenar positivamente para o guarda, como se aprovasse aquela posição, e então se presta a ouvir o resto e capta alguns pontos interessantes.

“Educado pela tribo deles? Ele me toma por um simplório, o bastardo.”

Responde:

- O único lugar que eu chamo de casa agora é o Drakar em que eu estiver.. e já que você falou nisso, qual é a tribo do seu Jarl? Todos vocês são homens lobo?

O jovem claramente imaginava que estavam falando sobre o Clã local, não sobre algum outro conceito mais elaborado, e parecia achar incrivel que todas as pessoas naquelas terras fossem lobisomens saidos das lendas. As pessoas comuns acreditavam que essas feras viviam nas profundezas da noite mas esse homem lobo em particular lhe parecera bastante civilizado. Prossegue prestando atenção à apresentação e quando lhe é falada a coisa sobre o nome explode em uma gargalhada franca, dizendo:

- Podia ser pior, dizem em outros portos que os homens dessa terra preferem os bodes.

Só então para pra refletir sobre a questão do nome Garou.. estava certo em seu sentimento prévio e as histórias sobre aquele lugar pareciam verdadeiras, homens lobo realmente viviam ali. E sobre o nome, bem..

“Ele não está falando sério..”

Começa a seguir o guarda e diz enquanto caminhava:

- Eu nunca estive em um Hov, acho que verei com os próprios olhos agora. É um prazer Steapa, ou você prefere o nome de lobo? Vamos compartilhar uma jarra depois se o seu Jarl não se sentir tentado a devolver minha cabeça para a Dragonesa.

Oferece a mão para um cumprimento e parecia quase despreocupado agora. Sihtric sabia que as fiandeiras ainda não estavam prontas para cortarem os fios de seu destino.